A cultura Inuit usa a contação de histórias para criar adultos “de cabeça fria”.
Durante década de 1960, a antropóloga Jean Briggs viveu por cerca de 1 ano e meio em uma comunidade Inuit, povo indígena que habita o território que chamamos de Canadá, e observou que naquela cultura mostrar sinais de irritação era considerado uma atitude infantil e fraca. Os adultos que encontrou não demonstravam ou não pareciam sentir raiva. A partir dessa percepção, Briggs passou a se perguntar: como as crianças birrentas se tornam adultos tão tranquilos? Décadas depois, a Rádio Pública Nacional dos Estados Unidos (NPR) voltou àquela comunidade para entender melhor esse fenômeno.
Sem gritaria
É consenso entre as mães Inuit que não se deve gritar com crianças pequenas. Criar os filhos da maneira tradicional envolve muito carinho — contando até com um beijinho especial para os bebês, em que o adulto coloca o nariz na bochecha do bebê e cheira a pele — e pouca bronca. Nessa cultura, broncas, gritaria ou até mesmo falar com uma voz irritada com as crianças são atitudes consideradas inapropriadas, independente do que a criança tiver feito.
Para os Inuit, mesmo que os pais achem que os pequenos estão fazendo birra só para provocar, não é isso que de fato está acontecendo. Eles acreditam que o comportamento agressivo da criança deve ser sintoma de uma causa que cabe aos adultos descobrir qual é. De fato, quando veem um adulto gritando com uma criança, têm impressão de que este é quem está dando um chilique e fazendo birra, se rebaixando ao nível dos pequenos. É um comportamento visto como degradante para o adulto. Lisa Ipeelie, uma produtora de rádio Inuit que cresceu com 12 irmãos e tem filhos pequenos, disse para a NPR: “Não ajuda levantar sua voz, só vai fazer o seu próprio batimento cardíaco subir”.
A psicóloga estadunidense Laura Markham chama atenção para o fato de que as crianças aprendem a regular suas emoções olhando para o exemplo dos pais. Portanto, se o adulto grita quando está com raiva, está ensinando a criança a mesma associação.
Bom, mas se os Inuit não gritam e não dão bronca quando os filhos aprontam, como é que fazem para educar suas crianças? Se sua filha puxa o cabelo do irmão mais novo ou se seu filho quando está na rua corre sem olhar para os lados, como proceder sem usar um tom de voz agravado?
Contação e encenação de histórias
A tradição milenar de história oral é uma ferramenta chave na criação tradicional de crianças Inuit. Os processos intensos de colonização — que incluíram até meados do século passado retirar crianças à força de suas comunidades e colocá-las em internatos do governo canadense — têm causado dano à essa forma de ensino, mas anciãos e suas comunidades trabalham para manter a tradição viva para o futuro.
As histórias são a maneira pela qual os Inuit buscam evitar os problemas, mas também as usam para resolvê-los. Eles contam histórias como ferramenta preventiva e encenam histórias como ferramenta de resolução. Tudo isso sem esquecer o bom humor, que também é central nessa prática: as crianças devem se divertir ouvindo e vendo as histórias.
Prevenção
Goota Jaw, que dá aula de parentalidade na Arctic College — uma faculdade voltada para as comunidades Inuit — e Myna Ishulutak, produtora de filmes, compartilharam com a NPR alguns exemplos dessas histórias passadas de geração para geração:
Para evitar que as crianças cheguem perto demais do mar, os pais Inuit contam uma história sobre o que estaria dentro do oceano: um monstro do mar que tem uma bolsa gigante nas costas especialmente para coletar criancinhas. O monstro gosta de coletar crianças que estão sozinhas perto da água e levá-las para o fundo do oceano onde elas são levadas para outra família. O resultado é que não há necessidade de gritar para a criança ficar longe da água porque, tendo ouvido essa história, a criança não vai querer ficar sozinha na beira do mar. A mensagem de perigo é transmitida através da história fantasiosa.
Para que as crianças se protejam do frio de noite na rua, os pais contam que a Aurora Boreal — também conhecida como “luzes do norte” e presente no céu das regiões habitadas pelos Inuit —, gosta de jogar futebol com as cabeças de criança que estão sem gorro.
Nesse contexto indígena do Ártico, essas histórias são vistas por esses povos como ferramentas para salvar vidas.
Resolução
Quando uma criança “faz um chilique”, ou uma “má-criação” — expressões que usamos para descrever aqueles momentos em que os pequenos agem movidos pela raiva, seja gritando, esperneando ou batendo — na nossa cultura é comum deixá-la de castigo. Na cultura Inuit, a reação é diferente: em vez de punir, ficam quietos até a criança se acalmar, e então encenam uma peça.
Mais especificamente, os adultos fazem uma espécie de reencenação do mau comportamento da criança, para a criança, desde a ação até as suas consequências.
O tom da conversa é sempre brincalhão. Mais surpreendente ainda é que essas conversas muitas vezes começam com os pais provocando o filho a repetir a má-conduta. Então, por exemplo, se a criança está batendo nos coleguinhas na escola, a mãe ou o pai podem começar a performance falando “Por que você não me bate?”. A partir disso, a criança já tem que começar a pensar em como proceder, e se morder a isca dos pais e bater neles, em vez de uma bronca, os adultos encenam as consequências: “ai, isso dói!”. E prosseguem com perguntas: “Você não gosta de mim? Você é um bebê?”. Com tom divertido e leve, os pais estão deixando claro que bater nos outros machuca, magoa, e não é um comportamento adequado para crianças, sendo “coisa de bebê”. Esse tipo de re-encenação é realizado algumas vezes, até que a criança pare de bater nos pais e o seu mau-comportamento pare.
Segundo a psicóloga Lisa Feldman Barrett, que estuda o funcionamento das emoções, esse exercício emocional é uma plataforma de treino, em que as crianças podem testar diferentes reações quando não estão no calor do momento de raiva. Dessa forma, aprendem a controlar os sentimentos nos momentos mais estressantes.
Podendo ser adaptado por pais ocidentais usando bichinhos de pelúcia ou bonecos para encenar as histórias — uma abordagem menos extrema que as aplicadas pelos pais Inuit — essas peças são, na verdade, palcos para as crianças desenvolverem seu controle emocional.
Lembrando que os elementos-chave são um tripé:
- Esperar até todo mundo estar calmo;
- Fazer muitas perguntas, mantendo a criança envolvida constantemente durante a encenação;
- Ser divertido. Manter um tom leve e brincalhão. Afinal, brincadeira é a linguagem das crianças!
Esses são apenas alguns aspectos da maneira tradicional como os Inuit educam suas crianças. Seus hábitos, ambientes, crenças, rituais e tradições são bastante diferentes dos nossos, e essas práticas são voltadas especificamente para criar crianças Inuit dentro de seu contexto indígena. Portanto, não faria muito sentido adotá-las com as nossas crianças sem levar em consideração todas as diferenças culturais e contextuais.
Ao compartilhar essas particularidades culturais ligadas à infância esperamos provocar reflexões sobre formas diversas de impactar de modo favorável o desenvolvimento emocional e social das crianças.
Fonte: Laboratório de Educação