Se você também vive se perguntando se está criando seu filho da maneira certa, uma boa notícia: em livro lançado recentemente, antropólogos afirmam que precisamos parar de nos responsabilizar por quem a criança vai se tornar no futuro
“Será que sou permissivo demais com o meu filho? “Deveria trabalhar menos para estar mais presente?” “Se eu deixá-lo dormir na nossa cama, vou atrapalhar sua autonomia?” Viver se questionando sobre a criação dos seus filhos, sem saber se está ou não os educando da melhor forma, é natural – a maioria dos pais se sente exatamente assim. A verdade é que ninguém consegue ter certeza de que está fazendo “a coisa certa” para a criança – ser mãe e pai está longe de ter uma fórmula perfeita! Mas já parou para pensar que talvez a “coisa certa” nem exista? Mais ainda: que o desenvolvimento da criança não depende apenas do pai e da mãe?
Foram essas possibilidades que inspiraram o casal de antropólogos Robert e Sarah LeVine a escrever o livro Do Parents Matter? – Why Japanese Babies Sleep Soundly, Mexican Siblings Don’t Fight, and American Families Should Just Relax (Os Pais Importam? – Por que Bebês Japoneses Dormem Profundamente, Irmãos Mexicanos não Brigam e Famílias Americanas Precisam Relaxar, em tradução livre). Lançada no fim do ano passado e ainda sem tradução para o português, a obra conjunta do professor e da pesquisadora da Universidade Harvard (EUA) é resultado de décadas de estudo sobre as diferentes formas de criar os filhos ao redor do mundo. Os antropólogos passaram por quatro continentes, observando as diferentes dinâmicas familiares em países como Índia, Nepal, Zâmbia, Nigéria, Quênia, Botswana, México e Venezuela. “Dedicamos nossa vida a esse trabalho. E descobrimos que há muita novidade para contar aos pais”, diz Robert em entrevista à CRESCER. Nas 193 páginas do livro, os autores relatam suas observações antropológicas, misturadas a algumas experiências pessoais (além de pais, também são avós). Para nós, pais brasileiros, que temos um ponto de vista ocidental e que estamos acostumados a atribuir a responsabilidade pela criação e cuidado dos filhos aos pais – e, sobretudo, à mãe –, diversas descobertas relatadas no livro podem soar completamente malucas. Por exemplo: em algumas sociedades agrárias africanas, como a dos Hausa, na Nigéria, é comum que mulheres amamentem bebês que não são seus. Já em comunidades do Sudeste Asiático e da porção indígena da América do Norte é normal que crianças entre 5 e 9 anos sejam as responsáveis pelos cuidados de seus irmãos mais novos. No Japão, meninos dormem na cama dos pais até os 10 anos. E tem mais: em algumas ilhas do Pacífico, as crianças podem ser “adotadas” por um membro da comunidade com quem se identifiquem – uma avó ou um tio, por exemplo – e serem criadas por ele em vez de seus pais. Chocante? Provavelmente. Mas se você ficou espantado com todas essas descobertas, aí vem a mais surpreendente delas: essas crianças sobreviveram e se desenvolveram normalmente. Sem traumas, neuroses ou precisando gastar rios de dinheiro em terapia. Todas elas se adaptaram ao modo como foram criadas, dentro de um contexto pertinente à sua comunidade e ao seu tempo. “As crianças são mais resilientes do que os especialistas acreditam”, resume Robert. Mais do que isso: elas aprendem e crescem com cada experiência.
Uma questão cultural
É claro que os exemplos trazidos no livro não pretendem ditar como os pais devem ou não educar os filhos, nem incentivar qualquer tipo de comportamento que não seja aceito no contexto social em que vivemos. O objetivo é justamente o contrário: desmistificar a ideia de que a mãe e o pai são a principal influência que as crianças recebem ao ampliar a visão sobre as variadas formas de educar, mostrando que não há uma que seja mais correta do que outra. E, com isso, diminuir o medo e a culpaconstantes de errar a mão e acabar prejudicando os filhos. “Cada sociedade tem seus próprios modelos, que também condizem com o momento que estão vivendo. Mas, ao conhecer exemplos de outras partes do mundo, você não só expande sua perspectiva sobre o que é ser um bom pai, como possivelmente alcança uma compreensão mais sofisticada sobre a criação dos filhos”, explica Robert. Veja as famílias na porção rural do México, por exemplo: por serem numerosas e unidas, são notáveis os laços de afeto e solidariedade entre irmãos. As crianças yoruba, da Nigéria, acostumadas que são à vida em comunidade, convivem diariamente com outras famílias em espaços comuns, o que as tornou extremamente sociáveis. E mesmo dormindo com os pais, as crianças japonesas desenvolvem sua autonomia e aprendem a ter responsabilidade sobre suas coisas, mostrando bons níveis de maturidade desde cedo. Se dá tão certo para eles, por que não daria para a gente?
A verdade é que há uma disseminação da psiquiatria ocidental em relação ao desenvolvimento infantil, que cria essa ideia de que qualquer atitude insensível dos pais pode prejudicar a saúde mental das crianças e traumatizá-las. “Os pais são responsabilizados por questões que, no fundo, não dependem inteiramente deles”, diz Robert.
Resultado? Pais e mães cheios de culpa e frustração, porque nem sempre conseguem atingir as expectativas. “É claro que o pai e a mãe são importantes, mas não tanto quanto as pessoas costumam pensar. Na verdade, os pequenos recebem um número enorme de influências – de sua própria personalidade, da comunidade, do seu ambiente. Os pais são apenas uma parte disso”, diz Sarah. Mais um motivo para essa ideia ser desconstruída o quanto antes, senão, sempre que a criança se comportar ou se desenvolver diferentemente do esperado, os pais continuarão sendo apontados como os culpados – tanto por pediatras, psicólogos e familiares quanto pelas próprias crianças.
Para ilustrar essa teoria e mostrar como a dinâmica familiar tem forte influência cultural, a antropóloga conta sobre a experiência mais marcante que viveu em todos os anos de pesquisa, em uma comunidade no norte da Nigéria com famílias do povo hausa-fulani. Elas seguem um restritivo código moral chamado kunya, que proibe contato visual, brincadeiras e até conversas entre a mãe e seus filhos mais velhos. Muitas vezes após o desmame, as crianças são enviadas para adoção por outras famílias e algumas chegam a ficar anos sem contato materno. “A falta da mãe era suprida por todas as outras mulheres da comunidade, como tias e avós. Assim, elas nunca ficavam desamparadas”, conta. Em contrapartida, quando Sarah trabalhou como terapeuta infantil em Chicago (EUA), auxiliando crianças ocidentais cujos pais haviam sobrevivido aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, a experiência foi oposta. Por conta do estresse e do trauma da guerra, esses pais não conseguiam se conectar aos filhos, que se sentiam perdidos.
A teoria do desapego
Se livrar da pressão de se sentir o único responsável pelo desenvolvimento do filho pode soar um tanto insensível e, de certa forma, se opõe a uma das correntes mais populares dos últimos anos: a teoria da “criação com apego”. Formulada na década 1960 pela psiquiatra infantil Bowlby-Ainsworth, ela estabelece que bebês cujas mães fossem “insensíveis” às suas necessidades, ao longo do primeiro ano de vida, desenvolveriam um “apego inseguro” e cresceriam com certa instabilidade emocional. O pediatra espanhol Carlos González é um dos entusiastas do conceito. Mas, para os antropólogos Robert e Sarah, essa teoria não faz sentido: “Uma criança constrói vínculos importantescom várias outras pessoas, como cuidadores e parentes, não sendo algo restrito à mãe. Eu e meus colegas, que estudamos os cruzamentos entre culturas, não acreditamos nisso. Para nós, não é científico”.
Em contrapartida, o casal de autores defende no livro o conceito de cama compartilhada, uma das práticas comuns dos adeptos da teoria do apego. “Não são apenas tribos da África ou da Ásia que dormem com seus filhos. Os seres humanos têm feito isso no mundo todo pelos últimos 2 mil anos”, diz Robert. Os antropólogos argumentam que boa parte do cansaço relatado pelos pais, sobretudo nos primeiros meses de vida do bebê, é justificado por esse arranjo em que filhos e pais dormem em camas separadas. Ainda assim, foi uma prática disseminada em boa parte das sociedades ocidentais.
A ideia do livro se resume em saber enxergar outras realidades sem um olhar viciado, entendendo como diferentes formas de cuidar adquirem sentido naquele determinado contexto. Quem sabe assim será possível desenvolver um olhar mais leve e tolerante ao encarar as próprias decisões. Pais e mães podem – e devem – dar o seu melhor. Mas crianças são criadas para (e pelo) o mundo. E é ao mundo que elas precisam se adaptar.
Mais liberdade, menos pressão
Aceitar que você não tem 100% de controle sobre a criação dos seus filhos é um desafio e tanto. “Quando se vive em uma sociedade em que todos creem naquele mesmo paradigma, é difícil acreditar em algo diferente”, diz a antropóloga. Mesmo que no Sudeste Asiático seja comum uma criança de 5 anos cuidar sozinha do irmão mais novo, o pai ou a mãe que permitir isso nos Estados Unidos ou no Brasil provavelmente será processado por negligência – e ainda será condenado por amigos e familiares. Esse é um exemplo extremo, é claro. Mas a questão é: estamos tão acostumados a agir de tal forma, pautados por nossa cultura e geração, que não nos damos conta de que isso também nos impõe limites de atuação como pais.
Como agir, então? De acordo com os autores, eles devem se comportar mais como sponsors, ou seja, patrocinadores, incentivadores dos filhos, em vez de assumirem toda a responsabilidade pelo seu desenvolvimento. É claro que crianças pequenas precisam de cuidados reais e práticos, como dar banho e comida e colocar para dormir. Isso é imprescindível por um tempo. Mas, segundo o casal, é essencial que os pais as ajudem a alcançar seus próprios objetivos, sem ditá-los, e também sem assumir as responsabilidades por suas frustrações e insucessos. “Entender que temos apenas uma quantidade de opções limitadas para ajudar nossos filhos é, de certa forma, um alívio. Ao nos colocar no papel de mentores, deixamos de assumir que a criança se tornará um reflexo daquilo que somos ou que esperamos que ela se torne”, afirma Robert.
Por isso, o principal conselho dos antropólogos para os pais americanos – e que também serve aos brasileiros – é: re-la-xe! Não é porque vai fazer uma viagem sozinho com seu companheiro que seus filhos vão se sentir abandonados e carentes pelo resto da vida. Assim como não é porque você pega o bebê no colo a cada choro que ele não vai aprender a andar com as próprias pernas ou ficar mimado. É muito carinho? É pouco carinho? É rigidez demais? Ou de menos? Não há uma resposta certa. E independente de como você agir, esteja certo de que seu filho vai entrar em contato com outros exemplos, outras formas de se comportar e pensar ao longo da vida – seja na escola, entre amigos, seja dentro da própria família.
Fonte: Revista Crescer